Raul, Gil e Veronika

Por Paulo Coelho, do seu Blog no portal G1

Hoje o dia parece rico em polêmicas. Não vale a pena discutir apenas pelo prazer de argumentar alguma coisa, mas não posso deixar passar três assuntos em branco – já que tenho uma direta relação com eles.

Começamos com Raul Seixas. Como declarei para a revista “Rolling Stone”, vinte anos atrás eu estava fazendo o Caminho de Roma quando soube de sua morte em uma cabine telefônica. Liguei para o Brasil (como fazia uma vez por semana) para ver se minha mulher estava bem. Tinha três moedas de cinco francos no bolso, um minuto e meio de conversa. Eu disse: “oi Cris, tudo bem?”. E ela: “Não sei se eu te conto”. Caiu a primeira moeda, depois a segunda e daí ela disse: “O Raul morreu”. Caiu a terceira moeda.

Fico muito contente ao ver que hoje Raul está mais vivo que nunca. Mas não se iludam: em seus últimos anos de vida era motivo de chacota para apresentadores de TV, e sistematicamente ignorado ou atacado pela imprensa. Eu acompanhei isso de perto – não é informação que me passaram. Mais de uma vez Raul me perguntou: “por que os jornalistas me odeiam tanto?” Infelizmente, a tragédia consagra. Assistimos a Jim Morrison no passado, e assistimos a Michael Jackson agora. A imprensa fez tudo para destruir Michael Jackson e, quando ele morreu, a comoção popular foi gigantesca. Longe de mim dizer que Raul morreu porque sentia-se rejeitado – sua morte foi uma escolha, e ponto final, não cabe a ninguém julgar sua decisão. Mas se estivesse vivo, não sei se seu ( ou nosso, dependendo das músicas) trabalho teria a repercussão que merece. Quem tiver paciência, que leia o brilhante discurso feito por Marco Antonio logo depois da morte de Julio Cesar, em “Julius Cesar” de Shakespeare.

Passamos para Gilberto Gil. Hoje um jornal paulista questiona o fato de Gil ter pedido apoio da Lei Rouanet. Ora bolas, não foi ele quem criou tal lei, e merece tanto respeito como todo e qualquer artista. Foi um ministro íntegro, levou a cultura brasileira a cantos aonde não conseguia chegar, teve o respeito, a atenção e o carinho de todos os seus pares estrangeiros. Para mim, foi talvez o melhor ministro da Cultura que tivemos recentemente. E no entanto, só pelo inscrever-se no programa, é imediatamente questionado. O atual detentor da pasta, Juca Ferreira, diz com toda razão: “a lei é para consagrados e não consagrados”. Gilberto Gil tem tanto direito de pleitear o apoio da Lei Rouanet como qualquer outro artista brasileiro. Ou será que é preciso que morra – como aconteceu com Raul – para ter seu inegável talento reconhecido?


Terminamos com “Veronika decide morrer”, o filme. Em primeiro lugar quero alertar a todos que não sei dos desígnios divinos, mas não tenho planos de morrer – como o personagem do título – tão cedo. Muito pelo contrário, espero completar meus vividos 62 anos na madrugada de domingo para segunda-feira. Não vi o filme. Recusei todas as entrevistas que me pediram, incluindo a do portal G1, onde mantenho este blog.

Tudo isso porque não sou o autor do roteiro, não dirigi, não conheço Sarah Michelle Gellar, e não acompanhei nada de perto. E qual minha surpresa hoje, ao ler as críticas? Em 80% dos casos, esqueceram o filme e preferiram partir para o ataque pessoal contra o autor do texto no qual “Veronika decide morrer”é baseado (neste caso, aquele que vos escreve). É a primeira vez que vejo o livro sendo mais importante que a película. Quais são os autores dos filmes baseados em livros que estão atualmente em cartaz? Eu sei alguns. Mas em nenhuma das resenhas o crítico os menciona. Mencionam diretor, ator etc. – mas é absolutamente irrelevante o livro que deu origem, porque a linguagem do cinema nada tem a ver com o autor do texto.

Exceto, claro, no caso de “Veronika decide morrer”. Evidente se a crítica fosse sobre o livro, eu não estaria aqui escrevendo isso. Mas não é, e não é justa a associação. Podem não gostar do que eu escrevo; podem também não gostar do filme. Mas um crítico com dignidade não faria associações que simplesmente não existem.

Raul Seixas, Gilberto Gil, Veronika. Todos, com muito orgulho, nascidos no Brasil (embora na ficção Veronika seja eslovena, e no filme foi transformada em nova-iorquina). Um país generoso, onde ainda bem as pessoas sabem o que querem – apesar das manipulações que têm data marcada para chegar, e data marcada para sair.


Fonte: Maktub

0 comentários:

Postar um comentário

design: derek corrêa